quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

LIÇÃO DE CORAGEM

O discípulo volta para perto do Mestre.
- Estão procurando pelo senhor.
- Quem?
- Dois homens. Não os conheço.
O Mestre acaricia a barba branca. Diz:
- Sei o que querem. Vieram me matar.
- Mas por que, Mestre? O que o leva a essa certeza?
- Há dias sonho com isso. Hoje encontrarei a minha morte.
- Fujamos, então. Sairemos pela porta dos fundos.
- Não adianta. Um deles já está lá, à minha espera.
E completa, sereno:
- Prefiro morrer pela porta da frente.
- Que coragem a sua, Mestre. Que coragem.
- Quando você tomar o meu lugar, espero que a tenha também.
- Não se preocupe, Mestre. Coragem, já tenho.
- Não, não tem. Se tivesse, você mesmo me mataria.
- Eu?!
- Seria mais decente. E pouparia o dinheiro gasto com esses dois assassinos.
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[gORj]

domingo, 4 de dezembro de 2011

MICROCONTOS DE DEZEMBRO

DA MUDEZ AO BERRO
Plantei uma muda de roseira. Com a chegada da Primavera, a roseira deixou de ser muda: suas rosas exibiam um vermelho berrante.
*
COM SISO
Só escrevia textos de uma linha. Todos os dias, uma linha. Quando se deu conta, havia costurado um romance.
*
INDISTINTA
No diário, anota: "O vestido custou uma nota".
Mesmo assim, ninguém a nota.
*
LA STRADA
Sua alegria era movida a álcool. Bebeu demais. Na estrada, uma depressão. Perdeu o controle. Capotou. Alegria estraçalhada. O coma e a recuperação. Entrou para o A.A. De lá saiu com uma nova alegria. Alegria sóbria, movida tão-somente pela vida.
*
MAIS UMA HISTÓRIA DE AMOR
Amavam-se. Tinham as mãos dadas ao presente, os três: ele, ela e a felicidade. Traçavam planos para o futuro. Tudo corria bem, até que o Destino...
Não. Dessa vez, não. Deixemos os dois em paz. Que ao menos eles sejam felizes para sempre.


* * *

[gORj]

CADERNO DE DESENHO


A manhã abre o céu.

Na página azul,
algumas nuvens esboçadas.

Um pássaro risca o ar.

No alto, asas de grafite
desenham amplos círculos.

E há o Sol
traçando contornos
de luz e sombra
em todas as coisas.

[gORj]

domingo, 27 de novembro de 2011

A OUTRA METADE

Lá está ele: curvado sobre o balcão, olhar perdido no copo vazio. Devo matá-lo. Feito o serviço, volto para receber a outra metade. Matá-lo, o pobre coitado. Sinto pena. Sempre fui durão; mas a gente envelhece, o coração amolece. Mesmo assim, devo fazer o serviço. Quem sabe se eu o provocar... Quem sabe ele reage: me insulta, me agride. Aí faço o que tenho de fazer e volto para receber o que falta, a outra metade. Aproximo-me, então. No rádio do bar toca uma canção, a minha predileta. O coitado, agora, fecha os olhos e canta junto. Canta afinado, o mesmo timbre. Chamo o garçom: “Uma dose dupla”. A música continua. “Essa letra é linda”, diz o condenado. Grito: “Uma, não; duas, por favor”. O garçom volta e enche os nossos copos. Brindamos, não mais vítima e algoz. “Foda-se a outra metade”, decido. “Do que você está falando?”, o infeliz me agarra, exaltado. Pena é algo leve, vai-se logo. “Quem te mandou aqui?”, continua o outro, apertando-me o braço. Não me aguento. Aperto o gatilho. Ainda bem. Quase perco a outra metade.

[gORj]

CANINOS


Corro pelo prado, a relva baixa. Latidos ferozes me alcançam: insultam, ameaçam. Os cães se aproximam. Preciso chegar ao penhasco antes que me alcancem. Aqueles capachos não terão coragem e destreza para saltarem até o outro lado, meu território. Território onde a mãe e os pequenos me esperam chegar com outra galinha entre os dentes.

[gORj]

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

BUUU!


Na esquina do cemitério, escondido na curva do muro: ali, próximo à faculdade, esperaria por ela. A última aula terminava dali a 5 minutos. Imaginava-a vindo, ele pulando em sua frente: "Buuu!". A cara dela branca de susto. Mas antes veio um ladrão. Chegou por trás: "Passa a carteira". Dinheiro suado. Ele resistiu. Um tiro. O bandido fugindo com a grana. Retorna o silêncio. O rapaz se levanta, desnorteado. Em cima do muro, um monte de gente, homens e mulheres olhando-o com pena. No chão, o seu corpo: rosto petrificado, branco de susto.
[gORj]

PANCADAS NA PORTA


– Abra. É a polícia.
Ele acorda, sobressaltado. A polícia? “Mas o que querem comigo”, pensa, tentando reconstituir os episódios da noite anterior. A cabeça ainda dói, a boca amarga. O porre. De mais nada consegue se lembrar.
– Abra!
Levanta para atendê-los.
Antes de abrir a porta, vê-se no espelho. Manchas de sangue em sua camisa.
Novas pancadas. Afasta-se.
– Se não abrir, vamos arrombar – gritam do outro lado.
A janela está aberta, convidativa. O hotel tem 13 andares; por sorte, hospedara-se no segundo. Tenta lembrar o que fizera de errado, mas as batidas cada vez mais fortes não deixam; vão derrubar a porta a qualquer momento. Fugir, não há outro jeito. Ele, então, corre para janela e salta. Nesse instante, retornam à lembrança fragmentos da noite passada. O encontro com a loira no bar do hotel. Palavras trocadas, drinques, carícias. O convite: “Vamos para o meu quarto”. Entraram no elevador, a caminho da cama dela: o último andar.
Lembra-se de chegarem à porta. A memória, no entanto, não passa daí. Apenas seu corpo continua a passar, um a um, pelos 13 andares.

[gORj]

domingo, 13 de novembro de 2011

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

CONEXÃO

Pôs fim às contas de e-mail. Às redes sociais, deixou o adeus: partiria do mundo virtual.
Morto para Internet, descobriu-se vivo para outras coisas.
Entregou-se à música. Teve aulas de fagote, apaixonou-se por uma flautista. Juntos, decidiram conhecer o mundo.
A alguns amigos ainda remete cartões postais. O último veio da Guatemala. Com esse, uma foto: ele sentado à beira do lago. Ambos conectados à vara de pescar.

[gORj]

terça-feira, 1 de novembro de 2011

PESADELOS



I.
É noite. Vocês estão numa floresta. Você e mais quatro pessoas. Seguem em fila indiana; você, o último. O primeiro carrega uma vela, que ilumina o caminho. Rajadas de vento sacudem as copas escuras. A chama se apaga. Passos em fuga. Você até correria, mas como? Seus pés agora balançam no ar, enquanto um abraço comprido lhe aperta o peito e o puxa para cima. Um relâmpago ilumina os galhos, as folhas... a serpente de olhos azuis. Olhos maiores que a sua cabeça. Outro clarão. Mas você já não pode ver mais nada.

II.
Suor, poeira, cansaço. Você cavalga sob o sol até se deparar com uma lagoa. O cavalo é o primeiro a entrar. De cima dele você mergulha. Deixa o corpo boiar, os olhos fechados. O sol arde no seu rosto, mas logo refresca. Você abre os olhos: tudo escuro. Na imensidão líquida na qual flutua, você vê pontos luminosos: estrelas. Um cardume delas nada ao seu redor. No céu, a lua. Crescendo, crescendo... Ou melhor, caindo. Despencando ao seu encontro e afugentando as estrelas. Só resta o brilho de dentes pontiagudos, enormes. Os dentes da lua, cada vez maiores.

III.
Você acorda e não encontra ninguém em casa. Sai. Na rua, também não há ninguém. Você decide caminhar. Bares, supermercado, padaria - tudo aberto, mas igualmente deserto. No meio da rua, você avista uma criança, brincando com uma boneca. Chega perto. Não é uma boneca: é você. Você transformado em brinquedo. Nesse instante, você escuta um grito. Gira a cabeça para ver, mas não encontra nada além das ruas desertas. A criança continua brincando. Você ainda não viu o rosto dela. Pergunta: quem é você? Ela não responde; seus ombros tremem, parece estar chorando. Engano seu. A criança está rindo. Na sombra infantil, o brinquedo despedaçado: membros, tronco, cabeça. O riso ecoa. Soa ainda mais apavorante que o próximo grito vindo não se sabe de onde. Você pensa em correr, mas não consegue. Suas pernas de plástico não obedecem.


* * *

[gORj]

domingo, 30 de outubro de 2011

MICROCONTOS DE OUTUBRO

A SEMENTE
Vendeu a terra querida. A terra regada com o suor dos seus antepassados. A terra lavrada pelas suas mãos calejadas. Vendeu.
Na terra que um dia foi sua, plantaram eucaliptos.
No coração da mata uniforme, nasceu um pé de tristeza: muda de uma lágrima semeada.
*

RETIN(h)A
O poeta morreu de olhos abertos. As mais belas imagens perderam-se em fuga.
*

O PODER DA ESCRITA
Achou uma caneta mágica. Escreveu "Sou feliz" e flagrou-se sorrindo. Escreveu "Sou rico" e ganhou na loteria. Escreveu "Encontrei o amor" e esbarrou-se com a mulher da sua vida. Escreveu, escreveu... Todos seus sonhos sempre realizados. A tinta chegava ao fim. Antes de acabar, ainda escreveu "Achei uma caneta mágica".
*

MAÇ(h)OS

Lançaram uma nova marca de cigarros:
"Triângulo das Bermudas".

Em uma casa qualquer, a mulher:
- Onde pensa que vai? - pergunta, azêda.
- Comprar cigarros.
E mais um homem sumiu sem deixar rastros.

* * *

[gORj]

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

TUBARÕES

NADA AO LADO

No bote, o náufrago mira o céu: nuvens, gaivotas, o azul. Teme olhar para o lado e rever a enorme barbatana que há horas o acompanha.



*


ÁGUAS DO SONO

Sonhou um naufrágio. Sozinha em alto-mar, flutuava amparada aos destroços do navio. Barbatanas à vista, enormes vultos próximo à superfície. Desespero, gritos. Encontraram-na estraçalhada. Os lençóis encharcados de sangue.


*


ATIVISTA

Abriram a barriga do tubarão branco. No convés, tripas, plástico... e o que era aquilo? Uma carteira de couro. Dentro, a carteirinha do Greenpeace.


* * *


[gORj]

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

POESIA NO TWITTER

CEDILHA
cai ou não cai?
a força virou forca
e matou o haicai.
*
@wgorj
* * *
Poemínimo
- Poesia no Twitter -
realizado pela Fliporto Digital.
*
A coletânea do ano anterior, da qual também participo, disponível aqui, em versão digital.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

MAIS DE MIL MINICONTOS

A Revista Veredas ultrapassa os 1.000 minicontos publicados
e é mencionada em livro didático, da editora Ática.

Confira a novidade no

domingo, 18 de setembro de 2011

GORJETAS EM PROSA E VERSO


Engolia sapos no serviço. Em casa, cuspia serpentes.
_________*

Banhava-se no raso do rio, quando tropeçou numa pedra arredondada, pouco maior do que um prato. Pesada, sim, mas nem tanto. A custo, levantou-a.
Foi tragado pelo redemoinho.
____________*

O Homem de Papel foi ferido de morte. Do seu ferimento escorreram palavras. A última a abandonar seu corpo translúcido tinha apenas quatro letras: vida.
________________*

"Abra o seu coração", ele pediu. Ela obedeceu. Fez tanto frio que o amor dele também morreu.
______________________*

Tinha uma caneta de estimação. Sempre a recarregava. Sem ela, não escrevia nada. Perdeu-a, e não se cansa de procurá-la. Sua obra-prima, ainda pela metade, continua à espera.
__________________________*

PRESENTE SUICIDA
Desembrulhou. No pacote havia um cd com as últimas canções do Renato Russo, uma caixa de giletes e outra de Lexotan.
______________________________*


Ponteiro lento.
O tédio é a ferrugem
na engrenagem
do tempo.
*_____________________________

O DIA EM QUE OS GALOS NÃO CANTARAM
Sete da manhã, ainda escuro.
Deus cutuca o Sol.
*_________________________

LENÇO PERFUMADO
O vento
roçou-me o rosto.
Tinha cheiro de café.
*_________________

Roupas brancas no varal.
Todas limpas, menos uma.
Suja pelo cocô do pardal.
No ar, paira uma pluma.
*_____________

A poesia é
um peixe fisgado
na realidade
em que estou mergulhado.
*__________

Pare e pense bem:
é preferível o silêncio
a falar mal de alguém.
*________

Fugiu meu pensamento.
Para onde foi?
Perguntem ao vento.
*______

Que merda é essa.
Quanto mais quero calma
mais tenho pressa.
*____

O que espero da vida?
Que as horas alegres
sejam maiores que as sofridas.
*___

Já cometi tantas besteiras,
mas a maior foi cair na bobeira
de não mais cometê-las.
*__

é o que sempre falo:
gente fina, sim,
mas não pisa no meu calo.
*_

amor?
só ser for agora.
no futuro, tô fora.
*

Assim é a vida:
por trás de cada encontro,
uma despedida.
* * *


[gORj]

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

XADREZ


Enquanto os grandes mexem suas peças

derrubando torres
manipulando bispos
enforcando reis

entre cavalos e peões
os pequenos movem suas vidas

cada um no seu quadrado.


[gORj]

MICROCONTOS


EFEITO BORBOLETA
Atiraram no lago o caroço de um pêssego, que, encharcado, atingiu o fundo.
Do outro lado do mundo, ocorreu um ligeiro abalo sísmico. Poucos sentiram. Um pessegueiro deixou cair um fruto maduro.

*

LÁGRIMAS PÓSTUMAS
Era um homem carregado de emoção. Qualquer lembrança boa transbordava pelos olhos. Seu velório causou assombro. E curiosidade: todos queriam ver o morto que chorava.

* *

LEGAL

Postava textos no Recanto das Letras. Uma leitora sempre comentava: "Legal!!!". Um dia, ela comentou "legal" sem nenhuma exclamação. "Não gostou muito?", perguntou o autor. "Sim", ela respondeu, "gostei muito, mas hoje estou rouca."

* * *


[gORj]

A VOZ


Na adolescência usava palavras emprestadas para me expressar: a maioria retirada das canções de rock. Raul Seixas, Renato Russo e Humberto Gessinger deram voz aos meus pensamentos e sentimentos. Depois vieram os livros e encontrei novos porta-vozes para minhas angústias e reflexões. Da leitura para escrita, hoje estou encontrando a minha própria voz. Posso contar com minhas próprias palavras para dizer o que penso, sinto e fantasio.
Satisfação maior é perceber que elas têm servido a outras pessoas. Talvez seja este o mistério: quando encontramos nossa própria voz, ela não é mais só nossa, mas de todos.

[gORj]

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

RESENHA - BONSAIS ATÔMICOS

Bonsais Atômicos

por Arth Silva*



Para um autor de micronarrativas é fascinante ler outro autor do gênero, principalmente quando esse é bom.


Há alguns dias, recebi do meu editor, Wilson Gorj – também é um dos meus escritores preferidos –, um presente chamadoBonsais Atômicos, de Denison Mendes. O livro, que logo no título já faz uma analogia aos seus microcontos bombásticos, é composto por mais de uma centena de microcontos e poemas mínimos, ambos inicialmente postados no Twitter e, devido a qualidade, publicados pelo selo 3x4, da editora Multifoco/RJ.


Como disse no início, quando um autor lê outro do mesmo gênero e encontra um bom texto, ele sempre escreve o frustrado microconto em sua cabeça: “Eu queria ter escrito isso!”.


Em vários nanotextos, senti essa inveja positiva, logo transformada em admiração e respeito, a qual, aliás, sempre tem o poder de nos inspirar.


Certa vez, algum sábio disse: “O bom escritor é aquele que escreve muito, em poucas palavras”. É exatamente isso que Denison Mendes faz, misturando gêneros, estilos e climas, que resultam na grandiosidade dos seus microcontos de 140 caracteres. Alguns repletos de poesia: “Desperta-me em braile, suplicou, cega de amor, na noite branca dos lençóis”. Outros, de uma cínica sabedoria: “No leito de morte, o ateu questionava-se: ‘Se vou para o céu, porque vão me colocar embaixo da terra?’”. Ou comédia: “A Eva foi a primeira garota-propaganda da Apple. ‘Steve Jobs’”.


Há ainda aqueles de um tamanho e profundidade que raramente consigo alcançar, como este: “Desato-me em nós”.


Resumindo, o livro Bonsais atômicos é uma pérola nas mãos daqueles que apreciam o microconto e, por conseguinte, a boa literatura. O espaço no qual esses textos foram gerados é uma lição ainda maior, mostrando-nos que não há lugar para a arte. Seja no Twitter, seja no guardanapo, no muro, no SMS ou no rabisco feito na palma da mão, o bom escritor faz sua arma atômica em qualquer lugar, provocando uma explosão de palavras e a emoção de uma geração.


Leia esses Bonsais e tire suas próprias conclusões. Outros textos do autor podem ser lidos em seu blog:


http://www.bahrboletras.blogspot.com/)
___________________


*Arth Silva é autor do livro Contos à queima-roupa, selo 3x4, ed. Multifoco.

ISCARIOTES

A descoberta de ter sido o traidor em outra encarnação, levou-o ao desespero; e este, ao suicídio.
Enforcou-se pela segunda vez.


gORj

DE VOLTA AO PLANETA

Tragada pelo Buraco Negro, a cápsula espacial saiu no exato ponto por onde segundos antes havia entrado, como se tivesse dado uma volta rápida e completa. Chegou o momento de voltar a Terra.Em solo firme, o astronauta foi pego de surpresa: todo o planeta havia sido tomado por baratas gigantes.


Último espécime da raça humana, logo ele descobriu, da pior maneira possível, que além de gigantes as baratas eram carnívoras. gORj

miQRoconto

Texto codificado. Aprenda a decodificá-lo
e aproveite para conhecer os outros microcontos.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Tesselário - selo 3x4

Do alvor de tesselas multicoloridas ao breu que berra catedrais
por Denison Mendes*

____Tece o mosaicontista ora tesselas imaculadas e transparentes ora o inexpugnável breu. Com maestria tesselária, subverte a natureza das coisas, palavras, espaço e tempo. Chegam ao paroxismo homem-quase, tamanha a capacidade artesã de cinzelar o instante e eternizar imagens.

____O tesselário ama a pedra, o vidro, o mármore, o granito... porque não os vê como tal, ele os enxerga como sujeitos a serem libertos da substância primitiva. Assim o faz Geraldo Lima, no livro Tesselário. O verbo é sua matéria-prima, e o resultado são mosaicos de rara beleza e transcendência.

____Logo de cara, a primeira tessela avisa cuidado. Mulher de organdi prima pela concisão e imagens a cirandear no pensamento. Olhos abertos. Eutanásia suspira em cinco linhas o que se tenta explicar em tratados. Já em Tesselário, que dá nome à obra, sentimos de perto o próprio Geraldo Lima, como se estivéssemos ao seu lado observando a angústia de sua criação.

____Terminada a primeira parte, respire e tome fôlego. Se tiver medo do escuro, acenda a luz. Aviso: não vá pensar que as letrinhas brancas no meio da escuridão são vestais. É breu puro.

____Após a leitura de Tesselário, cerro fileira junto aos leitores de Geraldo Lima. Autor singular e polissêmico, escritor que celebra fractais como se abraçasse o cosmo, a nós todos, os esquecidos e os que virão, infinitamente.


*Denison Mendes é autor do livro Bonsais Atômicos, selo 3x4 (Multifoco/RJ).

A VENDA


Eu vendo o pôr-do-sol...

Ninguém se interessa.

A pressa venda os olhos.

gORj

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O ÚLTIMO RELÓGIO



Não aguentava mais a ditadura dos relógios. Mais que na hora de se livrar deles. Sem perder um minuto, retirou-lhes as pilhas e arrebentou suas cordas. Contou os segundos até se acalmar. Quedou-se, por fim, no silêncio da casa, atento apenas às batidas do próprio coração.

gORj

segunda-feira, 11 de julho de 2011

FLORES E LÁGRIMAS

Sempre foi violento. Por qualquer motivo me espancava. Agora, veja só, até parece outro homem. Toda semana me traz flores: deposita-as no meu túmulo e as rega com seu remorso.

gORj

CIGARROS

Fumava duas carteiras de cigarros por dia. Morreu beirando os 95 anos. Ataque cardíaco.
O filho, que fumava apenas um maço diário, faleceu aos 46. Enfisema pulmonar.
Aos 23 anos foi a vez do neto. Que morreu num acidente de carro, enquanto fumava seu primeiro cigarro. De maconha.

gORj

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Histórias curtas de tirar o fôlego

Resenha de Geraldo Lima *


Se eu tivesse lido apenas o miniconto Lembranças de viagem, do jornalista e escritor Carlos Barbosa, já teria elementos suficientes para dizer que se trata de um autor com pleno domínio da técnica narrativa e dono de uma sensibilidade ímpar. O referido miniconto faz parte do livro A segunda sombra, de Carlos Barbosa (Selo 3x4, Editora Multifoco, 2010). Ele abre a série de 80 textos curtos, que não ultrapassam o limite de uma página, alguns, inclusive, são o que eu chamo de nanocontos: uma história condensada em apenas uma linha. Cito como exemplo: "Matou por um copo d’água. Ficou ainda mais sedento" (Serial) e "Não morreu, mas perdeu o olho" (O curioso).
Eu poderia ter fechado o livro, após ter lido o miniconto Lembranças de viagem, e me dado por satisfeito como leitor, pois se trata de um texto maravilhoso, que nos surpreende pela perfeita combinação entre o poético e o trágico, o que torna ainda mais densa a narrativa. Ele lembra, pela crueza da imagem do indivíduo moribundo sendo depenado por curiosos, o conto Uma vela para Dario, de Dalton Trevisan. Poderia ter fechado o livro, mas não o fiz; segui virando as páginas e me deparando com narrativas curtas de tirar o fôlego. É o caso de In supremo, Boca, O nevoeiro, Êxtase, Felícia, Natalício, O réveillon de Sonzin, Sangue quente, Conto de Natal, Um caso comum, A espera, A mudança, O casamento do século, Numa tarde de verão. Alguns desses textos nos fisgam pelo final surpreendente, como é o caso de In supremo, que bem poderia ser classificado como um miniconto de FC carregado de desesperança, e A espera, em que o narrador-personagem nos dá a impressão de estar preparando um ambiente onde reencontrará a amada e a felicidade, mas nos surpreende com uma frase curta e desalentadora: "Preparo com zelo a minha queda". Mais tocante que isso impossível. Outros trazem a marca da violência que molda os indivíduos na urbe moderna. Surpreenderam-me, nesse caso, Sangue quente (a violência no trânsito como tema) e Natalício (a miséria gerando revolta e marginalidade). Vez ou outra Carlos Barbosa injeta, numa narrativa aparentemente séria, que busca explicitar as adversidades do indivíduo na sociedade, um pouco de humor e ironia. Isso acontece, por exemplo, em A mudança (impossível conter o riso enquanto assistimos à mudança se transformar em outra coisa suspeitíssima), O réveillon de Sonzin (um final que acaba com a reputação de qualquer aspirante a bandido) e Conto de Natal (um diálogo cáustico entre marido e esposa, expondo as fissuras da família contemporânea).
A inegável qualidade literária do livro de Carlos Barbosa sustenta-se na habilidade com que o autor lida com uma variedade de temas (frustração amorosa, loucura, violência urbana, questões agrárias, marginalidade, infância pobre, desesperança em relação à humanidade etc.), expondo a alma humana e suas complexidades, e no manejo de uma linguagem que mescla o poético e o prosaico, o registro popular da língua e o culto. Quando intensifica o aspecto poético da linguagem, o lirismo do texto de Carlos Barbosa mostra-se ainda mais vigoroso e a história amplia o seu sentido. Em alguns textos, inclusive, o caráter poético da linguagem se sobrepõe ao narrativo, apagando as fronteiras entre os gêneros e realçando o mistério, o enigma.
Outros leitores, ao contrário do que aconteceu comigo, poderão ser fisgados por outros textos de A segunda sombra, o que só deixa evidente a riqueza literária desse belo livro de Carlos Barbosa
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* Geraldo Lima é escritor e colunista do blog O BULE. Seu último livro, Tesselário, também foi publicado pelo selo 3x4.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

DISCÍPULOS DE WERTHER






1. Do medo do fogo, nasceu sua atração pela água; do desprezo pela vida, o interesse pela morte.
Atração e interesse que explicam perfeitamente seu afogamento suicida.

2. Indo ao cais, despiu-se e mergulhou.
Enquanto se afogava, a visão de suas roupas a salvo revelou a estupidez do seu gesto. “Câimbras", deduzirão. E sua morte voluntária não passaria de mera fatalidade.

3. A vida reservava-lhe um futuro promissor. Mesmo assim cortou os pulsos debaixo do chuveiro.
Todo seu futuro foi pelo ralo.



gORj

ALAVANCA


Ao encostar-se numa das árvores da Floresta Mágica, sentiu o tronco inclinar-se lentamente, produzindo um ruído semelhante ao de uma alavanca há tempos emperrada.
Subitamente, a Terra parou.


gORj

quarta-feira, 1 de junho de 2011

ENGORDA

Era o terceiro só naquele mês. Por que fugiam? A filha sempre os tratava tão bem. A mulher, então... Alimentava-os mais do que o necessário.
Chegavam magrinhos, magrinhos, e, em pouco tempo, já estavam redondos de tanto comer. E depois, simplesmente fugiam, os ingratos.
Assim pensava ele. Mas, para sua esposa, chinesa nata, os cães eram muito mais saborosos que ingratos.
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gORj

METAMORFOSE

Descia a rua deserta, quando ergueu os olhos e viu a lua cheia a despir-se das nuvens. Tal visão o encheu de pavor. Era sexta-feira 13!
Ao consultar o relógio, ficou ainda mais apavorado: faltavam apenas dois minutos para a meia-noite.
Imediatamente, pôs-se em fuga. Enquanto corria, seus pés e mãos transformaram-se em patas.

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gORj

CAINDO NA AUTOCONFIANÇA

Durante a nossa infância, nossa irmã mais velha costumava levar e buscar a gente no colégio. Toda vez ela nos alertava para o perigo de certa boca-de-lobo que havia em meio ao trajeto. E eu sempre implicava, rebatendo com o argumento de aquele aviso era desnecessário, haja vista que não éramos cegos.
Um dia, então, minha irmã esqueceu-se ou desistiu de nos avisar.
Foram necessários quase cinquenta minutos até que ela voltasse com ajuda e me tirassem de dentro daquele buraco escuro e fedorento.
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gORj

FERRUGEM

Adorava andar de bicicleta; a namorada, porém, insistia que ele deveria comprar um carro. Cedeu aos argumentos dela. Não só comprou o veículo como fez dele seu transporte prioritário, quase exclusivo.
Ao renunciar às pedaladas, a preguiça tomou conta do seu corpo. Tornou-se sedentário. Cansaço, lentidão, adiposidade.
– Sinto-me enferrujado.
A ferrugem também consome a bicicleta no quintal.

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gORj

UMA CARONA PARA LUA

Escutou o homem dizer ao filho que a lua era toda feita de queijo.
De queijo! Melhor notícia não receberia. Besteira, portanto, continuar naquela casa feita de migalhas avarentas. Havia descoberto o paraíso. Para alcançá-lo, precisaria apenas de uma carona.
O rato, então, fez sua trouxinha e partiu.
A NASA – ficaria muito longe?
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gORj

domingo, 29 de maio de 2011

INCOMUNICÁVEL

Tinha fome de letras. Comia o “s” dos plurais, o “d” dos gerúndios, o “r” dos verbos. Insaciável, deu também para comer palavras inteiras, até se tornar incompreensível.
Não satisfeito, passou a devorar frases, orações e períodos completos.
Restaram-lhe grunhidos e interjeições. Em pouco tempo, roeu-os até a mudez total.
Agora só lhe resta devorar o silêncio.


gORj

FUGIDIA

Caminhava pela ponte quando, abaixo, iluminada pelo pôr do sol, flagrou a Poesia sentada à beira do rio. Graças à câmera do celular, conseguiu registrá-la naquele momento mágico.
Tão logo chegou em casa, descarregou a foto no computador: a paisagem fotografada enfeitaria o monitor.
Dias depois, a imagem ainda estava lá. A Poesia, não.


gORj

COM A CORDA TODA

No dia 28 de maio de 2007, através dos noticiários, ficamos sabendo que um ministro japonês, envolvido em escândalo de corrupção, enforcou-se num edifício parlamentar, em Tóquio.
A notícia dá o que pensar. Imagine só se, por um milagre de consciência, o mesmo acontecesse com os nossos políticos corruptos. Quantos metros de forca seriam necessários?
Dezenas, centenas... Quilômetros até.
Mesmos assim, é de duvidar que tamanha quantidade de corda fosse suficiente para costurar o rombo econômico deixado pela traça voraz da corrupção.
Ao fim das contas, enquanto eles, os corruptos, roem a corda, o povo trabalhador e honesto vive na corda bamba – e o que é pior, com a corda no pescoço.


gORj