quarta-feira, 29 de junho de 2011

Histórias curtas de tirar o fôlego

Resenha de Geraldo Lima *


Se eu tivesse lido apenas o miniconto Lembranças de viagem, do jornalista e escritor Carlos Barbosa, já teria elementos suficientes para dizer que se trata de um autor com pleno domínio da técnica narrativa e dono de uma sensibilidade ímpar. O referido miniconto faz parte do livro A segunda sombra, de Carlos Barbosa (Selo 3x4, Editora Multifoco, 2010). Ele abre a série de 80 textos curtos, que não ultrapassam o limite de uma página, alguns, inclusive, são o que eu chamo de nanocontos: uma história condensada em apenas uma linha. Cito como exemplo: "Matou por um copo d’água. Ficou ainda mais sedento" (Serial) e "Não morreu, mas perdeu o olho" (O curioso).
Eu poderia ter fechado o livro, após ter lido o miniconto Lembranças de viagem, e me dado por satisfeito como leitor, pois se trata de um texto maravilhoso, que nos surpreende pela perfeita combinação entre o poético e o trágico, o que torna ainda mais densa a narrativa. Ele lembra, pela crueza da imagem do indivíduo moribundo sendo depenado por curiosos, o conto Uma vela para Dario, de Dalton Trevisan. Poderia ter fechado o livro, mas não o fiz; segui virando as páginas e me deparando com narrativas curtas de tirar o fôlego. É o caso de In supremo, Boca, O nevoeiro, Êxtase, Felícia, Natalício, O réveillon de Sonzin, Sangue quente, Conto de Natal, Um caso comum, A espera, A mudança, O casamento do século, Numa tarde de verão. Alguns desses textos nos fisgam pelo final surpreendente, como é o caso de In supremo, que bem poderia ser classificado como um miniconto de FC carregado de desesperança, e A espera, em que o narrador-personagem nos dá a impressão de estar preparando um ambiente onde reencontrará a amada e a felicidade, mas nos surpreende com uma frase curta e desalentadora: "Preparo com zelo a minha queda". Mais tocante que isso impossível. Outros trazem a marca da violência que molda os indivíduos na urbe moderna. Surpreenderam-me, nesse caso, Sangue quente (a violência no trânsito como tema) e Natalício (a miséria gerando revolta e marginalidade). Vez ou outra Carlos Barbosa injeta, numa narrativa aparentemente séria, que busca explicitar as adversidades do indivíduo na sociedade, um pouco de humor e ironia. Isso acontece, por exemplo, em A mudança (impossível conter o riso enquanto assistimos à mudança se transformar em outra coisa suspeitíssima), O réveillon de Sonzin (um final que acaba com a reputação de qualquer aspirante a bandido) e Conto de Natal (um diálogo cáustico entre marido e esposa, expondo as fissuras da família contemporânea).
A inegável qualidade literária do livro de Carlos Barbosa sustenta-se na habilidade com que o autor lida com uma variedade de temas (frustração amorosa, loucura, violência urbana, questões agrárias, marginalidade, infância pobre, desesperança em relação à humanidade etc.), expondo a alma humana e suas complexidades, e no manejo de uma linguagem que mescla o poético e o prosaico, o registro popular da língua e o culto. Quando intensifica o aspecto poético da linguagem, o lirismo do texto de Carlos Barbosa mostra-se ainda mais vigoroso e a história amplia o seu sentido. Em alguns textos, inclusive, o caráter poético da linguagem se sobrepõe ao narrativo, apagando as fronteiras entre os gêneros e realçando o mistério, o enigma.
Outros leitores, ao contrário do que aconteceu comigo, poderão ser fisgados por outros textos de A segunda sombra, o que só deixa evidente a riqueza literária desse belo livro de Carlos Barbosa
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* Geraldo Lima é escritor e colunista do blog O BULE. Seu último livro, Tesselário, também foi publicado pelo selo 3x4.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

DISCÍPULOS DE WERTHER






1. Do medo do fogo, nasceu sua atração pela água; do desprezo pela vida, o interesse pela morte.
Atração e interesse que explicam perfeitamente seu afogamento suicida.

2. Indo ao cais, despiu-se e mergulhou.
Enquanto se afogava, a visão de suas roupas a salvo revelou a estupidez do seu gesto. “Câimbras", deduzirão. E sua morte voluntária não passaria de mera fatalidade.

3. A vida reservava-lhe um futuro promissor. Mesmo assim cortou os pulsos debaixo do chuveiro.
Todo seu futuro foi pelo ralo.



gORj

ALAVANCA


Ao encostar-se numa das árvores da Floresta Mágica, sentiu o tronco inclinar-se lentamente, produzindo um ruído semelhante ao de uma alavanca há tempos emperrada.
Subitamente, a Terra parou.


gORj

quarta-feira, 1 de junho de 2011

ENGORDA

Era o terceiro só naquele mês. Por que fugiam? A filha sempre os tratava tão bem. A mulher, então... Alimentava-os mais do que o necessário.
Chegavam magrinhos, magrinhos, e, em pouco tempo, já estavam redondos de tanto comer. E depois, simplesmente fugiam, os ingratos.
Assim pensava ele. Mas, para sua esposa, chinesa nata, os cães eram muito mais saborosos que ingratos.
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gORj

METAMORFOSE

Descia a rua deserta, quando ergueu os olhos e viu a lua cheia a despir-se das nuvens. Tal visão o encheu de pavor. Era sexta-feira 13!
Ao consultar o relógio, ficou ainda mais apavorado: faltavam apenas dois minutos para a meia-noite.
Imediatamente, pôs-se em fuga. Enquanto corria, seus pés e mãos transformaram-se em patas.

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gORj

CAINDO NA AUTOCONFIANÇA

Durante a nossa infância, nossa irmã mais velha costumava levar e buscar a gente no colégio. Toda vez ela nos alertava para o perigo de certa boca-de-lobo que havia em meio ao trajeto. E eu sempre implicava, rebatendo com o argumento de aquele aviso era desnecessário, haja vista que não éramos cegos.
Um dia, então, minha irmã esqueceu-se ou desistiu de nos avisar.
Foram necessários quase cinquenta minutos até que ela voltasse com ajuda e me tirassem de dentro daquele buraco escuro e fedorento.
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gORj

FERRUGEM

Adorava andar de bicicleta; a namorada, porém, insistia que ele deveria comprar um carro. Cedeu aos argumentos dela. Não só comprou o veículo como fez dele seu transporte prioritário, quase exclusivo.
Ao renunciar às pedaladas, a preguiça tomou conta do seu corpo. Tornou-se sedentário. Cansaço, lentidão, adiposidade.
– Sinto-me enferrujado.
A ferrugem também consome a bicicleta no quintal.

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gORj

UMA CARONA PARA LUA

Escutou o homem dizer ao filho que a lua era toda feita de queijo.
De queijo! Melhor notícia não receberia. Besteira, portanto, continuar naquela casa feita de migalhas avarentas. Havia descoberto o paraíso. Para alcançá-lo, precisaria apenas de uma carona.
O rato, então, fez sua trouxinha e partiu.
A NASA – ficaria muito longe?
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gORj