quarta-feira, 20 de abril de 2011

MESTRE MEDUSA

Premiado escultor, aplaudido em vários salões de arte. Suas esculturas humanas causavam assombro, tamanha precisão de detalhes. Por conta delas, recebera o apelido com o qual há anos assinava suas obras.
Uma dúvida, porém, perseguia Mestre Medusa: teria ele condições de reproduzir com igual maestria um modelo não-humano?



Jornal O Lince

edição mar/abril

domingo, 10 de abril de 2011

NEM MESMO OS PASSARINHOS TRISTES

Resenha de

Luciano Rodrigues Lima

Os mini-contos de Mayrant Gallo são micro-narrativas, como lembra Jean-François Lyotard sobre a pós-modernidade. E os seus minicontos trazem poeticidade, fundindo – e confundindo – os gêneros:

O PRÓLOGO

O motorista empurra o táxi até o fim da fila. Assim poupa gasolina. A mesma que perderá de todo, à noite, ao perder a vida. (Gallo, 2010, p. 85)

A forma, o ritmo e a economicidade do mini-conto lembra o haikai. Teremos chegado à nanonarrativa, à narrativa mínima? A escrita de Mayrant Gallo ainda traz um certo frescor como a dos poetas do movimento beat americano, ou o cosmopolitismo das narrativas experimentais como Paralelo 42, de John dos Passos, ou ainda a agilidade épico-dramática de Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado. Mas os minicontos de Mayrant soam também como o comentário malicioso no bar, a maledicência nas mesas de escritórios, um boato. O autor suga a potência das histórias de rua.


NEM MESMO OS PASSARINHOS TRISTES: LITERATURA COMO SKETCH

Antes de falar sobre o livro, deixemos o livro falar:

MUSEU

Um grande roubo de jóias.

A polícia britânica, sem pistas.

O ladrão, misto de bon-vivant e gentilhombre,

Some

E reaparece meses depois,

Descendo de uma limusine

Para embarcar num certo Titanic.

O colar mais valioso do jogo

É hoje um despojo

Numa vitrine.

O mini-conto-poema suspende todo o peso da tradição narrativa, tirando-o das costas do leitor, como propunha Alain Robbe-Grillet (aquele da “escola do olhar”, isto é, aquela onde o autor narra o que olho está vendo, como uma câmara) e, ainda, ironiza os clichês das histórias de detetive. São várias metalinguagens somadas. O texto poderia ser lido, também, como um roteiro desossado, ou um sketch cômico, irônico, como os da companhia de teatro Monty Python. O leitor poderá experimentar, ainda, outras sensações com esse miniconto. Pode lê-lo em voz alta e ouvi-lo como um poema. No passado narrava-se em verso.


Mayrant Gallo adensa a linguagem, encurrala a forma, cospe nos clichês literários (mas não os descarta), mas não renega a poesia. Nem despreza a beleza. “Veranico”, um conto-poema de três linhas e, no entanto, com uma metáfora incendiada de inspiração. A idéia de atar o jogo lesto entre som e significado da lírica com o movimento e a ação da narrativa épica é que produz o impacto violento na imaginação do leitor. São trabalhos literários, os contos-poemas de Mayrant, em Nem mesmo os passarinhos tristes, de natureza semelhante às instalações, esculturas inacabadas, performances que vemos nas exposições de arte contemporânea. Funcionam como centelhas (ou senhas) para a criatividade do leitor, o qual é convocado para trabalhar na construção e acabamento do livro.


Nem mesmo os passarinhos tristes arrasta consigo diversos outros textos e ainda agrega mais alguns trazidos e encaixados pelo leitor. São ecos de João Gilberto Noll (“Alguma coisa urgentemente”), de Clarice, de Hemingway e seus homens incompletos em lugares para homens – os bares –, dos contos “barra-pesada” de Rubem Fonseca, dos cronópios de Júlio Cortazar, de autores que impregnam a literatura de nosso tempo, como Truman Copote, e das “graphic novels” (romances em quadrinhos) que aparecem com força em tempos de arte-multimídia.

Há algo de voyeur no olhar que vê o mundo, em Mayrant Gallo. São retinas que devoram a imagem, como as dos autores de pulp fiction ou dos cartoons, como Matt Groening, dos Simpsons. Mayrant busca saciar a sede do leitor por narrativas e o formato que ele prefere é o “caso”. O caso bem contado e o mal contado. Às vezes, o caso “mal contado”, lacônico, com palavras imprecisas, serve melhor ao autor e ao leitor, pois restam lacunas a serem preenchidas. Ele deixa as brechas para os leitores penetrarem e trazerem as histórias para suas vidas.

Mayrant Gallo também teoriza, metalingüísticamente, em seu quase-conto “O padeiro”. Ali, o autor ironiza o mito de que, em literatura, o mais difícil é começar, isto é, pegar um ponto de vista, um ponto de observação para narrar. Então, ele começa a narrar e abandona, para deixar o espaço livre à imaginação, que será sempre mais lépida do que as palavras.

Sente-se a presença de um certo gosto de classe média na escrita de Mayrant Gallo. É quase impossível para um autor escapar da prisão trancafiada por dentro que é a sua cultura. No entanto, Mayrant pratica também a crítica ao viver da classe média, mostrando a incerteza e a precariedade do mundo real, contra a idéia de perenidade e continuidade que norteia a mentalidade dessa classe social pretensiosa. É aí que se percebe a estatura do escritor, medida pela sua capacidade de criticar o seu meio e suas crenças aferradas, captar o absurdo e o paradoxo da existência humana.

Nicolau e Ricardo, seus heróis detetives, são homens indecisos, sem uma causa, talvez nem mesmo uma amizade sincera entre eles próprios. Um “par ímpar”, como diria Oswald (trocadilho que Oswald usou para o casal Oswald-Pagu). Vivem cada dia, sobrevivem. Parecem representar a era da fragmentação, do individualismo, da relativização.

Cabe à crítica, atualmente, descobrir e indicar autores, textos, sem adjetivá-los. A obra de Mayrant Gallo merece ser lida por captar o espírito da atualidade, algo que nem sempre somos capazes de realizar, ocupados que estamos em viver irrefletidamente a era do absurdo.


* LUCIANO RODRIGUES LIMA

Professor Adjunto da Universidade Federal da Bahia

Professor Titular da Universidade do Estado da Bahia