sexta-feira, 23 de abril de 2010

DETALHE ULTRARREALISTA


Tinha fascínio por aquele quadro. Gastava horas admirando-o em todos os detalhes: a casa modesta cuja chaminé expelia fumaça tão branca quanto às nuvens; as árvores frondosas com pássaros esvoaçando das copas; o campo eivado de flores e borboletas estampadas em cores vivas; ao longe, montanhas azuis de cumes altos e enevoados.
Num primeiro plano, repousava o riacho cujas águas provinham de uma tímida cachoeira que, ao fundo, despencava entre rochedos cobertos de musgos.
Olhando para o quadro, o homem imaginava-se ali, naquele cenário bucólico.
De tanto olhar, cansara a vista e as pálpebras sonolentas cobriram-lhe os olhos.
De repente, o sobressalto: viu-se emergir dentro do quadro, onde, agora, tudo era verdadeiro, não mais mera pintura.
Saindo do riacho, tirou a camisa molhada e, eufórico, correu pelos campos: o vento a deslizar pelos cabelos, secando o corpo e aliviando o peso das calças encharcadas.
Correu até aproximar-se da casa. A porta estava aberta. Parecia não haver ninguém ali.


*

Decide entrar. Julga-se sozinho, mas logo escuta vozes atrás da parede, no cômodo ao lado. Recua até a porta à espera de que alguém apareça. O dono da casa não demora a surgir. Chega vagaroso, arrastando-se, o corpo encurvado num cajado e o rosto encoberto por amplo chapéu. “Ô velha”, berra o ancião, voltando-se para o local de onde saiu. “Venha cá. Acho que temos visita”.
No mesmo vagar surge um vulto em trajes negros. A companheira do velho... Horrível aparição!
O visitante, apavorado, volta-se para o ancião e seu terror se multiplica. O sombreiro na mão ossuda, órbitas vazias, dentes expostos batendo-se num riso diabólico – uma caveira igual à outra, a parceira de longos cabelos grisalhos.
Pavor, coração e pernas em disparada. Sem olhar para trás, o homem atravessa o gramado até a margem, de onde mergulha no riacho...

*

Torna a emergir. Mas, dessa vez, das águas do sono.
Sobressaltado, acorda quase sem fôlego. Procura se acalmar. A sala está abafada, seus cabelos úmidos. Do peito escorrem filetes de suor.
A salvo no sofá, tenta enxugar da lembrança o pesadelo macabro.
Olha mais uma vez para o quadro na parede. Tudo normal. A paisagem continua a retratar o mesmo o sossego de antes.
Algo, no entanto, parece diferente. À margem do riacho, um pequeno detalhe chama a atenção.
Enquanto seus olhos buscam reconhecer o novo elemento na pintura, uma corrente de ar frio entra pela janela e lhe provoca calafrios.
É quando se dá conta de que lhe falta a camisa.


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O ENCANTO DA SEREIA


Quando o ACQUA MUNDI convocou a imprensa para revelar a nova atração, ninguém poderia imaginar que se tratasse de algo tão fabuloso.
Não se admira, portanto, que depois da coletiva tenha ocorrido aquele alvoroço todo. Extensas filas se formaram para ver a extraordinária criatura. O parque aquático nunca recebera tanta gente.
Lucros nas alturas. Dia após dia o movimento aumentava. Estavam ainda comemorando os recordes de bilheteria, quando a Direção se viu diante de algumas complicações...

*

Enfeitiçados pela beleza da sereia, os homens queriam pular no aquário para tê-la nos braços. Os mais exaltados tentavam como loucos estourar os vidros blindados, nos quais, muitas vezes, outros mais contidos grudavam os lábios ardentes de desejo. Também os funcionários não tinham paz. De noite, o canto envolvente da sereia pervertia-lhes o juízo, do mesmo modo que de dia sua formosura provocava os visitantes.
Depois de muito deliberar, a direção do ACQUA MUNDI determinou que os ingressos só fossem vendidos a mulheres e crianças; e quanto aos funcionários, encontraram saída mais fácil, obrigando a equipe noturna a trabalhar com tapa-ouvidos. Julgavam assim ter encontrado a melhor solução.

*

As conseqüências, porém, foram danosas. Com as restrições, o movimento na ala da sereia caiu drasticamente: as mulheres preferiam ver os golfinhos e as crianças, os tubarões.
Destituída da admiração masculina, a sereia mergulhou em profundo desânimo. Adoentou-se e, definhando a olhos vistos, perdera todo o encanto. Nem mais cantava à noite.
Então, tomado de remorso, o proprietário do parque aquático decidiu devolvê-la a seu local de origem, a fim de que ela, em regresso ao mar, pudesse finalmente morrer em paz.
Com o auxílio das marcações náuticas feitas à época, chegaram a um ponto aproximado de onde a capturaram, e ali cuidadosamente soltaram-na, certos de que não tornariam a vê-la de novo.
Enganavam-se. Do oceano em que afundara, a sereia emergiu, instantes depois, completamente diferente. Da velha criatura nada restava. Tinha rejuvenescido, estava mais bela do que nunca. Seu canto ainda mais envolvente...
*

Dias depois, encontram a embarcação do ACQUA MUNDI à deriva.
Não havia nenhum sinal de sua tripulação.
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RASTRO


Conversavam na cozinha. Súbito, a patroa ouve da boca da empregada algo que a sobressalta, uma opinião irreverente e original cuja inteligência não condizia com o limitado intelecto da moça. “Esse ponto de vista não me é estranho”, pensou cismada. E olhando para a cabeça da outra, muito bela por sinal, obteve dali a revelação. “Ah, agora compreendo”, deduziu a patroa. “Isso só pode ser obra do meu marido”. Certamente ele havia passado por aquela mente tacanha e deixado de presente aquele pensamento peculiar.
Mas, tão logo a mulher pensou nisso, o ciúme pariu a dúvida: teria o marido passado somente por ali?
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FISSURAS

img.: Van Gogh


I.
Não conseguia dormir, tamanha excitação. Para atrair o sono, apelou para a tradicional contagem de carneirinhos.
Contava já o centésimo, quando achou prudente parar. Zoofilia não era a sua praia.


II.
Dificuldade ao urinar. Por mais que tentasse, apenas pingava; era como se algo estivesse obstruindo a saída da urina. Quanto mais forçava, mais doía.
Conseguiu, afinal. Da uretra expeliu o corpo estranho, aquilo que o impedia de aliviar a bexiga.
Espanto ao ver aquela traça boiando na privada.
Pudera. Há tempos não sabia o que era sexo.
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domingo, 4 de abril de 2010

MÃOS


A pedido da cigana, concedeu-lhe a mão para ler.
Ela sentenciou: “Seu grande amor está onde você menos imagina”.
Estava certa.
Dias depois, quem lhe pedia a mão era ele.
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REVELAÇÃO


Trancou-se no laboratório da escola e, motivado pela revista pornográfica, ejaculou sob a lente do microscópio. Curioso, pôs-se a observar no líquido seminal a multidão de criaturinhas que nadavam afoitamente. Admirou-se. Todas vieram dele. Pensamento óbvio, do qual adveio outro: na verdade, os espermatozóides eram ele. Sim, todos eram ele, multiplicado aos milhões.
Daí lhe veio a revelação. “Talvez Deus nos veja assim”, pensou. “Somos Ele. Todos nós. Ele, multiplicado aos bilhões.”
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O ANIVERSARIANTE


Comemoravam o Natal. Eis então que escutam palmas.
– Quem será?
O anfitrião saiu para ver e encontrou um homem ao portão (a julgar pelo aspecto, só podia ser um andarilho).
– O que deseja?
– Vim tomar parte da festa – respondeu o estranho com a maior naturalidade.
– Parte?
– Por que não? Nada mais justo. Afinal, o aniversariante sou eu.
O dono da casa olhou-o com pena. “O sujeito é maluco”, pensou. E depois, querendo tirar proveito da situação, provocou-o:
– É mesmo? Então me prove.
– Tens pouca fé.
– Café? Tenho, sim.
– Não quero café. Traga-me pão!
– Ah, já entendi. Você vai multiplicá-lo...
– Duvida?!
“Que estratégia desnecessária para matar a fome”, tornou a pensar. “Bastasse pedir, ora!”.
E sarcástico:
– Espere aí, Jesus. Volto logo.
Segundos depois, voltou trazendo algo melhor.
– Não temos pão.
E com um riso debochado, entregou o panetone.
– Agora o senhor faça o favor de multiplicá-lo em outro lugar.
Dito isso, deu as costas ao desconhecido e retornou para junto dos convidados.
A comemoração seguiu noite adentro.
Quando o primeiro conviva deixou à festa, mal acreditou em que seus olhos viam. Não havia por onde sair. Empilhados na calçada, milhares de panetones isolavam aquela casa.

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MAR SEM FIM


A primeira fase de sua vida foi marcada pelas histórias de aventura, preferencialmente aquelas ambientadas no mar. Não é de admirar que o seu livro predileto fosse o Moby Dick, no qual mergulhara várias vezes, relendo-o sempre com igual empolgação. Entretanto, adulto, viu-se obrigado a trocar as leituras marítimas por outras menos imaginosas. A partir de então a aridez dos livros técnicos veio ocupar-lhe os dias.
Assim foi até o dia em que terminou numa cama de hospital, padecendo de grave enfermidade.
Como não tivesse família nem parentes próximos, contava unicamente com a assistência de um amigo, na verdade um colega de trabalho, a quem pediu um favor, acompanhado deste argumento: “Sei que posso morrer a qualquer hora. Mas, enquanto estiver vivo, pelo menos não quero morrer de tédio”. Queria, portanto, que o outro lhe arranjasse um livro. Não qualquer livro. Tinha de ser um que falasse do mar: “Uma história marítima”.
*

No dia seguinte, o colega lhe trouxe a encomenda. Assim que leu o título, sentiu uma grande onda de emoção subir-lhe a garganta e, com força, arrebentar-se nos olhos. Mais do que um livro, aquele seria um portal através do qual teria de volta toda sua infância povoada de aventuras e mistérios.
Ainda trazia a vista marejada, quando o colega se despediu, deixando-o a sós com o livro.
*

Ao livro: urgia singrar-lhe as páginas!
Enfunadas as velas da imaginação, partiu rumo à longa viagem...
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Partida sem volta. No peito inerte, jazia o livro com as páginas voltadas para baixo, emborcado feito um barco devolvido à praia.

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UM LADRÃO


I.

A muito custo, ia juntando grana para comprar a motocicleta dos seus sonhos. Para tanto, contava com o apoio do tio, a quem ajudava nos bicos de pintura.

Toda semana pintava alguma coisa. Para aquela estava agendado serviço na residência de um casal de idosos.

Logo no primeiro dia, pintando as paredes da sala, o ajudante descobriu algo atrás de um dos quadros. Era um cofre. De imediato, ocorreu-lhe um pensamento, rápida suposição que cruzou sua mente deixando um rastro de fumaça escura. No mesmo instante, reprovando-se, o rapaz abanou a cabeça, como se quisesse dissipar o fumo negro das más intenções.
Consciência limpa, voltou a ocupar-se do seu trabalho, entretendo a mente com outras coisas.
II.

Segundo dia. Pintando o quarto do casal, o jovem encontrou a carteira do velho sobre a cômoda. Outra vez o tal pensamento deu uma acelerada em sua mente. Abriu a carteira. Dentro, apenas alguns trocados. Fuçou. De uma reentrância retirou um papelucho com uns números em série. O pensamento negro roncou o motor. Anotou-os.
III.

Terminaram o serviço. Recebida do tio a parte combinada, juntou-a ao montante guardado. Ainda faltava muito para comprar a moto sonhada. O tal pensamento voltou a acelerar.
IV.

Na mesma noite, o sobrinho do pintor pulou o muro da casa dos velhinhos e entrou na sala pela janela previamente aberta.
V.

Penumbra. O luar delineando os objetos. A caminho do quadro, ele percebe algo no sofá. Forçando a vista, reconhece o boné esquecido pelo tio. Pensa no pobre coitado. Sempre de bicicleta, dando duro na vida, ganhando seu dinheiro à custa de muito trabalho. O que haveria de pensar dele se o visse agora? Que golpe seria. Que decepção. Quanta vergonha e desgosto. Ele mesmo já se sentia envergonhado de estar ali. Ainda estava em tempo de se arrepender. Ainda podia voltar atrás.
VI.

Antes, porém, de partir, aproximou-se do sofá e, com o rosto molhado de arrependimento, apanhou o boné. Foi quando apareceu o dono da casa. Apontava uma arma. Trêmula arma. Trêmula e precipitada.
VII.

No corpo baleado, o velho demorou a reconhecer o jovem pintor.
Um ladrão, constatou depois, sem nenhum arrependimento.
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