sábado, 21 de outubro de 2023

UMA MERDA


“A vida é uma merda”, filosofou o ricaço após uma baforada do seu charuto cubano, com sua impotência submersa na hidromassagem do motel de luxo.
“A vida é uma merda”, filosofou o trabalhador, pai de três filhos, ao voltar para casa amargando seu desemprego aos solavancos do ônibus lotado.
“A vida é uma merda”, filosofou o tímido adolescente quando viu o seu amor secreto nos braços do seu ódio confesso.
“A vida é uma merda”, filosofava a mosca enquanto se esbaldava sobre as fezes de um mendigo, que realmente levava uma vida de merda.

[gORj]

DO LIVRO HISTÓRIAS PARA NINAR DRAGÕES

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AS ROSAS DE AUSCHWITZ


Os soldados de Himmler convertiam em adubo as cinzas dos prisioneiros que eram cremados após sua passagem pelas câmaras de gás. Um pouco desse adubo foi parar no solo de uma roseira sob a janela do gabinete de um oficial nazista.
Veio, então, a primavera. A despeito de tantos botões, daquela roseira nenhuma flor desabrochou. O jardineiro tinha a sua explicação: “Cada botão dessa roseira é uma mão fechada que se nega a abrir. A sovinice dos judeus a contaminou”. Os nazistas riam da piada e apontavam as outras roseiras floridas sob outras janelas.
O tempo passou. Chegou o inverno, e o Terceiro Reich, como as pétalas das demais roseiras, tombou por terra. Permaneceram apenas os botões daquela “roseira sovina”.
Botões que finalmente desabrocharam.
Mesmo sob o frio intenso, os tênues galhos exibiam rosas abertas como feridas, vermelhas como sangue. Para elas, havia chegado a primavera.

[gORj]

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

RECÉM-CASADOS


Acordou de madrugada e foi à cozinha beber água. No azulejo próximo ao filtro de barro viu um grupo de formigas andando apressadas em fila indiana. Subitamente lhe ocorreu uma ideia. Um lampejo romântico. Abriu a geladeira, apanhou um pote contendo calda de pêssego e, com a ponta do dedo, pôs em prática a sua doce, pegajosa ideia.
Pela manhã, a mulher surpreendeu-se com aquela pequena aglomeração de formigas na parede da cozinha. Formavam um coração e, abaixo, em letras vivas e fervilhantes, as três iniciais de “eu te amo”.
Emocionada?
Nem um pouco. Sua reação foi a mais prosaica possível. Apanhou um inseticida e, pulverizando-o sobre o local, pôs fim no aglomerado de formigas, aquelas pobres criaturas que, involuntariamente, serviam a um amor mal correspondido.

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CONFRONTO


“Você de novo aqui. Não tem vergonha? Pai de filhos lindos, esposa amorosa, uma família invejável. E você aqui... Um canalha, isso sim. Trocando sua mulher por esta que não vale o chão que ela pisa. Mas não adianta argumentar: você sempre volta. E depois aparece na minha frente com essa cara de arrependimento. Sem-vergonha, isso sim. Você é um sem-vergonha que não merece a esposa e os filhos que tem. Agora volta para lá. Volta para os abraços da outra, se farta mais um pouco antes de regressar para a casa como se nada demais tivesse acontecido. Sem-vergonha. Canalha.”
No banheiro da amante, sempre a mesma conversa: sua consciência culpada a emprestar voz ao espelho.

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