domingo, 27 de novembro de 2011

A OUTRA METADE

Lá está ele: curvado sobre o balcão, olhar perdido no copo vazio. Devo matá-lo. Feito o serviço, volto para receber a outra metade. Matá-lo, o pobre coitado. Sinto pena. Sempre fui durão; mas a gente envelhece, o coração amolece. Mesmo assim, devo fazer o serviço. Quem sabe se eu o provocar... Quem sabe ele reage: me insulta, me agride. Aí faço o que tenho de fazer e volto para receber o que falta, a outra metade. Aproximo-me, então. No rádio do bar toca uma canção, a minha predileta. O coitado, agora, fecha os olhos e canta junto. Canta afinado, o mesmo timbre. Chamo o garçom: “Uma dose dupla”. A música continua. “Essa letra é linda”, diz o condenado. Grito: “Uma, não; duas, por favor”. O garçom volta e enche os nossos copos. Brindamos, não mais vítima e algoz. “Foda-se a outra metade”, decido. “Do que você está falando?”, o infeliz me agarra, exaltado. Pena é algo leve, vai-se logo. “Quem te mandou aqui?”, continua o outro, apertando-me o braço. Não me aguento. Aperto o gatilho. Ainda bem. Quase perco a outra metade.

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CANINOS


Corro pelo prado, a relva baixa. Latidos ferozes me alcançam: insultam, ameaçam. Os cães se aproximam. Preciso chegar ao penhasco antes que me alcancem. Aqueles capachos não terão coragem e destreza para saltarem até o outro lado, meu território. Território onde a mãe e os pequenos me esperam chegar com outra galinha entre os dentes.

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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

BUUU!


Na esquina do cemitério, escondido na curva do muro: ali, próximo à faculdade, esperaria por ela. A última aula terminava dali a 5 minutos. Imaginava-a vindo, ele pulando em sua frente: "Buuu!". A cara dela branca de susto. Mas antes veio um ladrão. Chegou por trás: "Passa a carteira". Dinheiro suado. Ele resistiu. Um tiro. O bandido fugindo com a grana. Retorna o silêncio. O rapaz se levanta, desnorteado. Em cima do muro, um monte de gente, homens e mulheres olhando-o com pena. No chão, o seu corpo: rosto petrificado, branco de susto.
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PANCADAS NA PORTA


– Abra. É a polícia.
Ele acorda, sobressaltado. A polícia? “Mas o que querem comigo”, pensa, tentando reconstituir os episódios da noite anterior. A cabeça ainda dói, a boca amarga. O porre. De mais nada consegue se lembrar.
– Abra!
Levanta para atendê-los.
Antes de abrir a porta, vê-se no espelho. Manchas de sangue em sua camisa.
Novas pancadas. Afasta-se.
– Se não abrir, vamos arrombar – gritam do outro lado.
A janela está aberta, convidativa. O hotel tem 13 andares; por sorte, hospedara-se no segundo. Tenta lembrar o que fizera de errado, mas as batidas cada vez mais fortes não deixam; vão derrubar a porta a qualquer momento. Fugir, não há outro jeito. Ele, então, corre para janela e salta. Nesse instante, retornam à lembrança fragmentos da noite passada. O encontro com a loira no bar do hotel. Palavras trocadas, drinques, carícias. O convite: “Vamos para o meu quarto”. Entraram no elevador, a caminho da cama dela: o último andar.
Lembra-se de chegarem à porta. A memória, no entanto, não passa daí. Apenas seu corpo continua a passar, um a um, pelos 13 andares.

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domingo, 13 de novembro de 2011

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

CONEXÃO

Pôs fim às contas de e-mail. Às redes sociais, deixou o adeus: partiria do mundo virtual.
Morto para Internet, descobriu-se vivo para outras coisas.
Entregou-se à música. Teve aulas de fagote, apaixonou-se por uma flautista. Juntos, decidiram conhecer o mundo.
A alguns amigos ainda remete cartões postais. O último veio da Guatemala. Com esse, uma foto: ele sentado à beira do lago. Ambos conectados à vara de pescar.

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terça-feira, 1 de novembro de 2011

PESADELOS



I.
É noite. Vocês estão numa floresta. Você e mais quatro pessoas. Seguem em fila indiana; você, o último. O primeiro carrega uma vela, que ilumina o caminho. Rajadas de vento sacudem as copas escuras. A chama se apaga. Passos em fuga. Você até correria, mas como? Seus pés agora balançam no ar, enquanto um abraço comprido lhe aperta o peito e o puxa para cima. Um relâmpago ilumina os galhos, as folhas... a serpente de olhos azuis. Olhos maiores que a sua cabeça. Outro clarão. Mas você já não pode ver mais nada.

II.
Suor, poeira, cansaço. Você cavalga sob o sol até se deparar com uma lagoa. O cavalo é o primeiro a entrar. De cima dele você mergulha. Deixa o corpo boiar, os olhos fechados. O sol arde no seu rosto, mas logo refresca. Você abre os olhos: tudo escuro. Na imensidão líquida na qual flutua, você vê pontos luminosos: estrelas. Um cardume delas nada ao seu redor. No céu, a lua. Crescendo, crescendo... Ou melhor, caindo. Despencando ao seu encontro e afugentando as estrelas. Só resta o brilho de dentes pontiagudos, enormes. Os dentes da lua, cada vez maiores.

III.
Você acorda e não encontra ninguém em casa. Sai. Na rua, também não há ninguém. Você decide caminhar. Bares, supermercado, padaria - tudo aberto, mas igualmente deserto. No meio da rua, você avista uma criança, brincando com uma boneca. Chega perto. Não é uma boneca: é você. Você transformado em brinquedo. Nesse instante, você escuta um grito. Gira a cabeça para ver, mas não encontra nada além das ruas desertas. A criança continua brincando. Você ainda não viu o rosto dela. Pergunta: quem é você? Ela não responde; seus ombros tremem, parece estar chorando. Engano seu. A criança está rindo. Na sombra infantil, o brinquedo despedaçado: membros, tronco, cabeça. O riso ecoa. Soa ainda mais apavorante que o próximo grito vindo não se sabe de onde. Você pensa em correr, mas não consegue. Suas pernas de plástico não obedecem.


* * *

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