domingo, 9 de dezembro de 2007

COMUNHÃO

Os santos e Nosso Senhor Jesus Cristo estão cobertos de roxo. O vigário está dormindo. Depois do almoço ele faz a sesta. Já é idoso. O sacristão está na casa dele. Foi fácil entrar na igreja. "Vou roubar e nenhum santo vai ver. Nem Jesus Cristo. Estão todos com a cara coberta", fala para si mesmo, em voz de surdina, Claudionor, o Nonô, ladrão de igrejas, enquanto força o sacrário e dele retira o cálice de ouro usado para a comunhão dos fiéis.
Lá fora um dia de sol brilhante. Sem uma nuvem. Dentro do templo o silêncio é quebrado pelo ranger das dobradiças da porta lateral. Chega o sacristão. Melhor fugir. Só dá para levar o cálice repleto de hóstias.
Pela porta da frente foge o ladrão. Na escadaria, um raio seco o fulmina. Cai segurando o cálice.
Nesse dia as aves do céu comungaram.

Arnaldo Setti,

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O miniconto é um gênero difícil, todos os que até agora escreveram sobre ele o dizem. E é verdade. Nada mais aparentemente fácil quanto meia dúzia de linhas, alguns caracteres, um enredo sucinto, um personagem com caraterísticas marcantes, e eis um miniconto. Nada mais longe da verdade. E os bons escritores que se dedicam a ele, e já são tantos, o sabem a duras penas. Nada pior do que a aparente facilidade. Nada mais distante do fácil e do fóssil, como dizia Drummond, do que o miniconto.
Pois o miniconto é um híbrido de conto e de poesia. Tem do primeiro a história, o fato, o personagem, e, do segundo, o imprevisto, o trabalho de linguagem, a síntese e a metáfora. Tem mais, da poesia, o fecho como o verso de ouro de um soneto. Não acerta um miniconto quem não sabe terminá-lo. Mesmo que se inicie o mais comum dos relatos, o miniconto termina sempre de uma maneira insólita e impactante, ou não termina, o que vem a dar no mesmo.
Mas quem escreve minicontos sabe que o leitor precisa de pontos de apoio, que não pode prescindir de um enredo para entreter-se com as coisas da vida, matérias do cotidiano, pequenas vidas de outros que são como as nossas, às vezes piegas, outras fantásticas, de qualquer modo realistas, pois no mundo e no miniconto tudo é possível.

Trecho da Apresentação do livro de Arnaldo Setti, assinada pelo poeta e minicontista José Eduardo Degrazia.



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