Luciano Rodrigues Lima
Os mini-contos de Mayrant Gallo são micro-narrativas, como lembra Jean-François Lyotard sobre a pós-modernidade. E os seus minicontos trazem poeticidade, fundindo – e confundindo – os gêneros:
O PRÓLOGO
O motorista empurra o táxi até o fim da fila. Assim poupa gasolina. A mesma que perderá de todo, à noite, ao perder a vida. (Gallo, 2010, p. 85)
A forma, o ritmo e a economicidade do mini-conto lembra o haikai. Teremos chegado à nanonarrativa, à narrativa mínima? A escrita de Mayrant Gallo ainda traz um certo frescor como a dos poetas do movimento beat americano, ou o cosmopolitismo das narrativas experimentais como Paralelo 42, de John dos Passos, ou ainda a agilidade épico-dramática de Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado. Mas os minicontos de Mayrant soam também como o comentário malicioso no bar, a maledicência nas mesas de escritórios, um boato. O autor suga a potência das histórias de rua.
NEM MESMO OS PASSARINHOS TRISTES: LITERATURA COMO SKETCH
Antes de falar sobre o livro, deixemos o livro falar:
MUSEU
Um grande roubo de jóias.
A polícia britânica, sem pistas.
O ladrão, misto de bon-vivant e gentilhombre,
Some
E reaparece meses depois,
Descendo de uma limusine
Para embarcar num certo Titanic.
O colar mais valioso do jogo
É hoje um despojo
Numa vitrine.
O mini-conto-poema suspende todo o peso da tradição narrativa, tirando-o das costas do leitor, como propunha Alain Robbe-Grillet (aquele da “escola do olhar”, isto é, aquela onde o autor narra o que olho está vendo, como uma câmara) e, ainda, ironiza os clichês das histórias de detetive. São várias metalinguagens somadas. O texto poderia ser lido, também, como um roteiro desossado, ou um sketch cômico, irônico, como os da companhia de teatro Monty Python. O leitor poderá experimentar, ainda, outras sensações com esse miniconto. Pode lê-lo em voz alta e ouvi-lo como um poema. No passado narrava-se em verso.
Mayrant Gallo adensa a linguagem, encurrala a forma, cospe nos clichês literários (mas não os descarta), mas não renega a poesia. Nem despreza a beleza. “Veranico”, um conto-poema de três linhas e, no entanto, com uma metáfora incendiada de inspiração. A idéia de atar o jogo lesto entre som e significado da lírica com o movimento e a ação da narrativa épica é que produz o impacto violento na imaginação do leitor. São trabalhos literários, os contos-poemas de Mayrant, em Nem mesmo os passarinhos tristes, de natureza semelhante às instalações, esculturas inacabadas, performances que vemos nas exposições de arte contemporânea. Funcionam como centelhas (ou senhas) para a criatividade do leitor, o qual é convocado para trabalhar na construção e acabamento do livro.
Nem mesmo os passarinhos tristes arrasta consigo diversos outros textos e ainda agrega mais alguns trazidos e encaixados pelo leitor. São ecos de João Gilberto Noll (“Alguma coisa urgentemente”), de Clarice, de Hemingway e seus homens incompletos em lugares para homens – os bares –, dos contos “barra-pesada” de Rubem Fonseca, dos cronópios de Júlio Cortazar, de autores que impregnam a literatura de nosso tempo, como Truman Copote, e das “graphic novels” (romances em quadrinhos) que aparecem com força em tempos de arte-multimídia.
Há algo de voyeur no olhar que vê o mundo, em Mayrant Gallo. São retinas que devoram a imagem, como as dos autores de pulp fiction ou dos cartoons, como Matt Groening, dos Simpsons. Mayrant busca saciar a sede do leitor por narrativas e o formato que ele prefere é o “caso”. O caso bem contado e o mal contado. Às vezes, o caso “mal contado”, lacônico, com palavras imprecisas, serve melhor ao autor e ao leitor, pois restam lacunas a serem preenchidas. Ele deixa as brechas para os leitores penetrarem e trazerem as histórias para suas vidas.
Mayrant Gallo também teoriza, metalingüísticamente, em seu quase-conto “O padeiro”. Ali, o autor ironiza o mito de que, em literatura, o mais difícil é começar, isto é, pegar um ponto de vista, um ponto de observação para narrar. Então, ele começa a narrar e abandona, para deixar o espaço livre à imaginação, que será sempre mais lépida do que as palavras.
Sente-se a presença de um certo gosto de classe média na escrita de Mayrant Gallo. É quase impossível para um autor escapar da prisão trancafiada por dentro que é a sua cultura. No entanto, Mayrant pratica também a crítica ao viver da classe média, mostrando a incerteza e a precariedade do mundo real, contra a idéia de perenidade e continuidade que norteia a mentalidade dessa classe social pretensiosa. É aí que se percebe a estatura do escritor, medida pela sua capacidade de criticar o seu meio e suas crenças aferradas, captar o absurdo e o paradoxo da existência humana.
Nicolau e Ricardo, seus heróis detetives, são homens indecisos, sem uma causa, talvez nem mesmo uma amizade sincera entre eles próprios. Um “par ímpar”, como diria Oswald (trocadilho que Oswald usou para o casal Oswald-Pagu). Vivem cada dia, sobrevivem. Parecem representar a era da fragmentação, do individualismo, da relativização.
Cabe à crítica, atualmente, descobrir e indicar autores, textos, sem adjetivá-los. A obra de Mayrant Gallo merece ser lida por captar o espírito da atualidade, algo que nem sempre somos capazes de realizar, ocupados que estamos em viver irrefletidamente a era do absurdo.
* LUCIANO RODRIGUES LIMA
Professor Adjunto da Universidade Federal da Bahia
Professor Titular da Universidade do Estado da Bahia
5 comentários:
não entendi: o motorista do táxi também era movido à gasolina?
É, sou mesmo antiga, nem um pouco moderna, pós-moderna então...
não tenho fôlego para ler tantas linhas com tantas citações, decididamente também não afino com academias!
Que pena, amigo Wilson!
O bom e velho Luciano Lima começa a dar sinais de esclerose, não houve nada pior no último ano do que esse arremedo de texticulos do Senhor Gallo, triste.
Eu aprecio a literatura do Mayrant. E conheço outros leitores que também gostam dos minicontos do autor. No fundo, é tudo uma questão de gosto e opinião. Respeito os comentários contrários, mas acho desnecessário apelar para um tom desrespeitoso.
W.G.
Mayrant é maravilhoso, como escritor e como pessoa. Foi meu professor em 2005 e, ainda hoje, é meu eterno mestre e amigo. Gostei da resenha. Ela me será muito útil, caso siga com o propósito de estudar a obra do Gallo, no mestrado. No mais, parabéns por divulgar ótimos autores, Gorj. Um grande abraço.
Obrigado, Wilson! Quanto aos ressentidos, nem mesmo os lamento, afinal de contas nem Jesus Cristo é uma unanimidade. E de maus leitores o Brasil está cheio! Abraço, companheiro!
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