EXCESSO DE POESIA
Ia todos os dias à biblioteca e todos os dias era o primeiro a chegar. Pedia um livro de poesia e sentava-se de frente para a entrada, lendo e fantasiando. Sempre que a porta se abria, descolava disfarçadamente os olhos dum poema e observava quem entrava. Andou nisto anos a fio, entre versos, rimas e sonhos, procurando a mulher da sua vida. Quando a encontrou perdeu-a em poucos minutos.
Na realidade, não teve prosa para ela.
UM DESERTO NO DESERTO
Pegou no comando da televisão. Nada. Chuva. Na cozinha, de frigorifico aberto, reparou que não tinha comida para encher o estômago que já havia horas estava em sinal de alerta. Deitou-se. A cama, outrora habitada por fortes tempestades nocturnas, parecia um deserto. Deitado no meio da cama, sentia que poderia percorrer um quilómetro para a esquerda e outro para a direita. Na rua, não havia ninguém que lhe interessasse. Não tinha família, não tinha mulher, não tinha filhos, não tinha amigos.
Nos últimos tempos, começara a sentir um forte aperto no estômago. Não um daqueles que indiciam um novo amor. Um aperto de pânico, de desespero, de querer morrer. Se aquela vida pequena, vazia e desinteressante, igual a tantas outras, nunca lhe dissera nada, naquele momento, menos lhe dizia.
Tentou ligar o rádio. Zero. Procurou uma tesoura. Cortou as unhas dos pés. Tomou banho. Queria ser um suicida higiênico.
in Primeira antologia de micro-ficção portuguesa, ed. Exodus, 2008 - seleção e organização de Rui Costa e André Sebastião.
2 comentários:
Foi o gosto por Jairo Aníbal Niño que me trouxe até aqui. Fiquei porque é um local onde dá prazer estar. Voltarei. :)Parabéns!
abraço
Esta gente portuguesa é tão especial! Eu gosto imenso do que escrevem!
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