sábado, 30 de dezembro de 2023

MICROCONTOS SORTIDOS



CONVERTIDO
De segunda a sábado, um bruto. Aos domingos, culto.

*

“Você não morre mais...”, disse o amigo quando ele apareceu ali, do “outro lado”.

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O CÚMULO DO ABANDONO
Daquela casa até os fantasmas tinham ido embora.

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A MUDA
Plantei-a no quintal. Quando floresceu, que eloquência de rosas!

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DE COPACABANA
— Enfim, sós! — disse o serial killer à sua no(i)va vítima.

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MENSAGEIRO
Aprendeu a língua dos ventos. Quando cantava, os mensageiros faziam coro.

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DERRETIDAS
Em seu velório, poucos compareceram. Ninguém para chorar. As velas, solidárias, derramavam lágrimas de cera.

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E LA NAVE VA
Do amor, aportou há algum tempo.
Agora, distante, olha seu casamento afundar.

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Por fora, extrovertida, cercada de amigos. Por dentro, solitária.
O médico receitou-lhe um vermífugo.

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MAL ENTENDIDO
– Vá se puder.
Ela entendeu errado. Não foi. Nunca foram o que poderiam ter sido.

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VULTOS
– Filho, estou muito velho. A morte se aproxima. Vejo vultos.
O rapaz retira os óculos do rosto paterno.
– Que vergonha, pai.
E esfregando as lentes na camisa, adverte-o:
– É preciso limpá-las de vez em quando, sabia? Estão imundas.

[gORj]

UM LADRÃO


A muito custo, economizava dinheiro para comprar a tão sonhada motocicleta. Para tanto, contava com o apoio do tio, a quem ajudava nos bicos de pintura.
Toda semana "pintava" alguma coisa. Para aquela estava agendado serviço na residência de um casal de idosos.

Logo no primeiro dia, pintando as paredes da sala, o ajudante descobriu um cofre atrás de um dos quadros. De imediato, ocorreu-lhe um pensamento: rápida tentação que cruzou sua mente deixando um rastro de fumaça escura. No mesmo instante, reprovando-se, abanou a cabeça, como se quisesse dissipar o fumo negro das más intenções. Consciência limpa, voltou a ocupar-se do seu trabalho, entretendo a mente com outras coisas.

Segundo dia. O tio pincelava a fachada. No quarto do casal, onde daria a primeira demão nas paredes, o sobrinho encontrou uma carteira sobre a cômoda. Outra vez o tal pensamento deu uma acelerada em sua mente. Abriu a carteira do velho. Dentro, apenas alguns trocados. Fuçou. De uma reentrância retirou um papelucho com uns números em série. O pensamento negro roncou o motor. Anotou-os.

Terminaram o serviço. Recebida do tio a parte combinada, juntou-a ao montante guardado. Ainda faltava muito para comprar a moto dos seus sonhos. O tal pensamento voltou a acelerar.

Na mesma noite, o sobrinho do pintor pulou o muro da casa dos velhinhos e entrou na sala pela janela previamente destravada.

Penumbra. O luar delineando os objetos. A caminho do quadro, ele percebeu algo no sofá. Forçando a vista, reconheceu o boné esquecido pelo tio. Pobre coitado. Sempre de bicicleta, dando duro, ganhando a vida à custa de muito trabalho. O que haveria de pensar dele se o visse agora? Que golpe seria. Quanta decepção e vergonha. Ele mesmo já se sentia envergonhado de estar ali. Ainda estava em tempo de se arrepender. Ainda podia voltar atrás.

Antes de partir, aproximou-se do sofá e, com o rosto molhado de arrependimento, apanhou o boné para devolvê-lo ao tio. Nisso, sentiu uma presença atrás de si. Virou-se e deu com o dono da casa, que lhe apontava uma arma. Trêmula arma. Trêmula e precipitada.

No corpo baleado, o velho demorou a reconhecer o jovem pintor.
“Um ladrão”, constatou depois, já sem nenhum arrependimento.

[gORj]