quarta-feira, 27 de setembro de 2023

MÃE SOLTEIRA


Pôs a filha para fora de casa.
— Grávida? Aqui não!
A justificativa:
— Sempre avisei que nesta casa não teria lugar para outra mãe solteira.
A adolescente sumiu por uns dias. Pouco depois, a mãe a recebeu de volta. Tinha o futuro e os pulsos cortados.
Na barriga da filha, a neta com poucas semanas, ambas veladas ao centro da sala.
Comentavam a tragédia, parentes e vizinhos, quando a mãe da adolescente surgiu do quarto com um bebê no colo.
— Minha netinha.
Trazia um sorriso tolo, os olhos boiando em lágrimas.
— Minha netinha — repetia, enquanto embalava nos braços a boneca que jamais dera à filha.

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DE LUXO


Despindo-lhe da calcinha, descobriu a tatuagem.
– Não me admira que seja tão cara a sua companhia. Você é uma mulher “cinco estrelas”.
– Conte direito, meu bem. São apenas três.
– E os seus olhos?

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O CAIXÃO


Noé foi o primeiro a padecer. Depois, morreram a esposa, os filhos, as noras e os netos. Por fim, todos os animais da arca sucumbiram à peste. Menos um – a ave que voou à procura de terra firme.
No convés, apenas um vulto transitava da popa à proa. No céu, um ponto negro se aproximava: era o corvo a regressar de sua viagem. Trazia no bico um ramo seco. Pousou no ombro de Caronte.

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Participação em livro sobre o miniconto no Brasil


(Editora UFMG, 2022) - Francilene Maira Ribeiro Alves Cechinel



segunda-feira, 25 de setembro de 2023

A LARANJA


O homem está refestelado na poltrona, as pernas esticadas.
– Mulher, tire meus sapatos.
Ela prontamente obedece.
– Agora – continua o homem – traga aquela gororoba que você chama de comida – diz fazendo um gesto com o controle na mão, enxotando-a da frente da tevê que exibe uma partida de futebol.
Instantes depois, ela retorna com a janta. Ele reclama:
– Imprestável. Você esqueceu a água. Será que tenho de pedir sempre?
E lá vai ela à cozinha, voltando a seguir com o copo cheio.
Terminada a refeição, o homem arrota satisfeito e ordena mais uma vez. 
– A sobremesa.
A esposa reaparece na sala com um prato raso sobre o qual repousam a faca e a laranja.
– Que isto? – pergunta ele, furioso. – Laranja verde? Não tinha uma melhor, não? Vá buscar outra agora, sua imbecil.
A gota d’água para que a fúria transbordasse. Os movimentos da mulher foram muito rápidos. Ela lançou o prato com a laranja na cara do marido, mas reteve na outra mão o cabo da faca. A lâmina penetrou fundo naquele peito peludo e repugnante. O homem apenas arregalou os olhos e escancarou a boca, o grito morto na garganta. 
Com calma, a mulher retirou a faca, limpou a lâmina na barra da saia e pegou de volta a laranja rejeitada. Descascou-a, tirou um pedaço, experimentou. Muito azeda, de fato. Mas ela nem fez cara feia.

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EM CENA



Debruçou-se no gradil da ponte. Olhou para baixo, as águas fundas do rio. Olhou depois para o lado esquerdo: ninguém. A seguir, virou-se para a direita, e avistou outro solitário como ele, a olhar fixamente para a correnteza. O que presenciou foi muito rápido: numa fração de segundos, o sujeito saltou por sobre a mureta e caiu como uma pedra, sumindo nas profundezas do rio.
A ele, triste candidato a suicida – um ator desempregado, que também não sabia nadar – , coube se retirar ainda mais frustrado do que quando chegara ali. Mais uma vez haviam lhe roubado a cena.

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LIBERDADE



Encontrava-se aprisionado. Logo constatou que os tijolos de sua cela eram livros volumosos, e as grades não eram de ferro, mas, sim, feitas de palavras, letras estritamente coladas umas às outras. Como escapar? Arrancou da parede um tijolo, ou melhor, um livro bem grosso. Por coincidência, abriu a obra bem na página em que alguém dizia: “Conheceis a verdade e ela vos libertará”. E foi assim que ele arrancou tijolo por tijolo, leu livro por livro, e quando deu por si, já não havia mais paredes nem grades.
A liberdade soprava em seu rosto.

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FORMIGAMENTO


Mal apagava a luz e fechava os olhos, começava a senti-las. Uma sensação enervante. Era como se uma carreira de formigas percorresse a sua pele.
Acendia a luz. Não encontrava nenhuma. Procurava no colchão, travesseiro, pelo chão, nada. Nenhum sinal.
Como a sensação persistia, por precaução, passava repelentes pelo corpo. Sem efeito, no entanto. As formiguinhas invisíveis insistiam.
O curioso é que no inverno a sensação simplesmente sumia. Mas assim que o tempo começava a esquentar, tudo voltava: lá vinham as tais formigas imaginárias atrapalhar seu sono. Procurou um dermatologista que, não encontrando nenhuma anormalidade no corpo, lhe indicou um psiquiatra. Esse, por sua vez, receitou uma medicação oportuna, de sabor açucarado. Fez efeito, ou melhor, deu quase certo.
Sim, quase. É que agora as formigas invisíveis só caminham por dentro dele, como se seguissem o rastro do doce remédio.

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domingo, 24 de setembro de 2023

O SOFÁ


                               

Na primeira fotografia do sofá, estávamos em 1944, sentados eu, meus pais e, na outra ponta, meu irmão. Ele devia ter uns treze anos; eu, perto de completar dez. Meus pais, nessa época, eram jovens e sorridentes.
Na segunda foto, em 67, meu irmão não se encontrava entre nós. Um ano antes, quando voltava do litoral com uns amigos, sofrera um acidente de automóvel e dias depois morreu no hospital. O sofá era o mesmo, mas em nossos semblantes nem a sombra da felicidade flagrada na primeira foto.
Da primeira para a terceira fotografia, passaram-se 41 anos. Em 1985, sentados no sofá, aparecemos somente eu e o meu pai com seus cabelos brancos, ar cansado, viúvo. Minha mãe havia sucumbido a diabetes. O sorriso forçado de nós dois era mais triste que uma careta de choro.
Na quarta foto, em 92, era a ausência dele que se fazia presente. Morrera dormindo, neste mesmo sofá. O eletricista, a quem pedi para bater a fotografia, deve ter achado um pouco estranho uma solteirona como eu querer ser fotografada sozinha num sofá tão desgastado.
Agora a máquina é outra, bem mais moderna. Nem precisa de filme. Também haverão de achar estranho que alguém queira imprimir a fotografia de um sofá velho e sem ninguém.

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LIMPEZA

Conheceu-a num desses encontros causais pelos corredores do supermercado. Era o que estava procurando: uma diarista. Sua casa estava um horror. Pedia urgentemente por faxina. Uma limpeza geral.
Deu à mulher seu endereço. Acertaram os valores. E no dia seguinte ela compareceu para começar o trabalho.
– Como vê, o local é pequeno – disse ele, apresentando o espaço. – Se puder, por favor – recomendou –, tire a poeira dos quadros. Só tenha muito cuidado. São valiosos para mim.
Feitas as recomendações, ele foi para o trabalho, deixando a casa entregue aos cuidados da faxineira.
Quando voltou, pegou de volta a chave, que a mulher deixou com o vizinho. Ao abrir a porta, o cheiro gostoso de limpeza deu-lhe boas vindas. Tudo estava brilhando. Especialmente o rack onde deveriam estar a TV de LED e o Playstation 5.
As paredes, nuas, reluziam.

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