A muito custo, economizava dinheiro para comprar a tão sonhada motocicleta. Para tanto, contava com o apoio do tio, a quem ajudava nos bicos de pintura.
Toda semana "pintava" alguma coisa. Para aquela estava agendado serviço na residência de um casal de idosos.
Logo no primeiro dia, pintando as paredes da sala, o ajudante descobriu um cofre atrás de um dos quadros. De imediato, ocorreu-lhe um pensamento: rápida tentação que cruzou sua mente deixando um rastro de fumaça escura. No mesmo instante, reprovando-se, abanou a cabeça, como se quisesse dissipar o fumo negro das más intenções. Consciência limpa, voltou a ocupar-se do seu trabalho, entretendo a mente com outras coisas.
Segundo dia. O tio pincelava a fachada. No quarto do casal, onde daria a primeira demão nas paredes, o sobrinho encontrou uma carteira sobre a cômoda. Outra vez o tal pensamento deu uma acelerada em sua mente. Abriu a carteira do velho. Dentro, apenas alguns trocados. Fuçou. De uma reentrância retirou um papelucho com uns números em série. O pensamento negro roncou o motor. Anotou-os.
Terminaram o serviço. Recebida do tio a parte combinada, juntou-a ao montante guardado. Ainda faltava muito para comprar a moto dos seus sonhos. O tal pensamento voltou a acelerar.
Na mesma noite, o sobrinho do pintor pulou o muro da casa dos velhinhos e entrou na sala pela janela previamente destravada.
Penumbra. O luar delineando os objetos. A caminho do quadro, ele percebeu algo no sofá. Forçando a vista, reconheceu o boné esquecido pelo tio. Pobre coitado. Sempre de bicicleta, dando duro, ganhando a vida à custa de muito trabalho. O que haveria de pensar dele se o visse agora? Que golpe seria. Quanta decepção e vergonha. Ele mesmo já se sentia envergonhado de estar ali. Ainda estava em tempo de se arrepender. Ainda podia voltar atrás.
Antes de partir, aproximou-se do sofá e, com o rosto molhado de arrependimento, apanhou o boné para devolvê-lo ao tio. Nisso, sentiu uma presença atrás de si. Virou-se e deu com o dono da casa, que lhe apontava uma arma. Trêmula arma. Trêmula e precipitada.
No corpo baleado, o velho demorou a reconhecer o jovem pintor.
“Um ladrão”, constatou depois, já sem nenhum arrependimento.
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