domingo, 29 de maio de 2011

INCOMUNICÁVEL

Tinha fome de letras. Comia o “s” dos plurais, o “d” dos gerúndios, o “r” dos verbos. Insaciável, deu também para comer palavras inteiras, até se tornar incompreensível.
Não satisfeito, passou a devorar frases, orações e períodos completos.
Restaram-lhe grunhidos e interjeições. Em pouco tempo, roeu-os até a mudez total.
Agora só lhe resta devorar o silêncio.


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FUGIDIA

Caminhava pela ponte quando, abaixo, iluminada pelo pôr do sol, flagrou a Poesia sentada à beira do rio. Graças à câmera do celular, conseguiu registrá-la naquele momento mágico.
Tão logo chegou em casa, descarregou a foto no computador: a paisagem fotografada enfeitaria o monitor.
Dias depois, a imagem ainda estava lá. A Poesia, não.


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COM A CORDA TODA

No dia 28 de maio de 2007, através dos noticiários, ficamos sabendo que um ministro japonês, envolvido em escândalo de corrupção, enforcou-se num edifício parlamentar, em Tóquio.
A notícia dá o que pensar. Imagine só se, por um milagre de consciência, o mesmo acontecesse com os nossos políticos corruptos. Quantos metros de forca seriam necessários?
Dezenas, centenas... Quilômetros até.
Mesmos assim, é de duvidar que tamanha quantidade de corda fosse suficiente para costurar o rombo econômico deixado pela traça voraz da corrupção.
Ao fim das contas, enquanto eles, os corruptos, roem a corda, o povo trabalhador e honesto vive na corda bamba – e o que é pior, com a corda no pescoço.


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NEM SONHANDO!

Sonhava que era uma doméstica muito atarefada e infeliz. Acordou sobressaltada e, ao mesmo tempo, aliviada por estar de volta à realidade.
Doméstica, sim. Atarefada, sim. Mas infeliz? Não!

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PREGUIÇOSO

A cada dia, atolava-se mais na preguiça.
De certo modo, foi por conta dela que morreu. Durante uma noite, acordou com fortes dores no peito. Poderia, então, ter ligado para o médico, quem sabe chamado uma ambulância, um amigo, que fosse.
Com certeza, teria feito isso, se o telefone não estivesse lááááááá na sala.


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terça-feira, 24 de maio de 2011

sexta-feira, 20 de maio de 2011

O ENCONTRO

A vida em sociedade sempre lhe fora hostil, razão pela qual buscava a solidão. Encontrara, portanto, o lugar ideal: um casarão mal-assombrado, cujo aluguel cabia folgado em sua aposentadoria. Pudera. Ninguém conseguia morar no local por muito tempo: barulhos de corrente, louças voadoras, vultos furtivos – tudo isso desvalorizara drasticamente o imóvel.
Ele, no entanto, não dava a mínima. Convivia tranquilamente com os fantasmas da casa – outrora cenário de um incêndio que vitimou toda uma família, a mesma a quem atribuíam aqueles distúrbios sobrenaturais.
Um dia, ruídos no quarto despertaram o novo inquilino. Ele abriu os olhos e, na semi-escuridão, vislumbrou ao seu redor um grupo formado de dois adultos, um adolescente e uma criança. Todos lhe sorriam.
Deles não sentiu medo, pois já sabia quem eram.
O chefe da família adiantou-se e estendeu-lhe a mão: “Seja bem-vindo”.
O inquilino estranhou. Afinal, convivia com eles há meses. Por que então só agora apareciam para lhe dar as boas vindas?
A estranheza desfez-se quando se voltou para cama de onde se levantara. O que viu não o assustou; pelo contrário, trouxe-lhe até alegria. Já não teria mais necessidade daquele corpo solitário. Agora seria diferente. Havia encontrado uma família.

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terça-feira, 17 de maio de 2011

TROCA

by René Margritte



Quando pela manhã me olhei no espelho, não pude evitar o espanto.
Aquele não era eu!
Um rosto bem mais moço e muito mais bonito ocupava o lugar das minhas antigas feições.
Com minha cara nova, sai de casa confiante, certo de que a partir dali teria as mulheres que sempre quisera. Uma nova vida se oferecia para mim.
Mas ele apareceu no meu caminho. Ele: o rosto que deixara de ser meu. Aquele rosto decrépito e feio.
Tive pena do homem que o vergava.
Pena e temor. Se ele me visse, sabe-se lá como seria a sua reação. O que faria ao me reconhecer, quer dizer, ao se reconhecer em mim?
Não esperei para saber. Fugi antes de ser visto.
Os presentes que a vida nos dá, não devemos devolvê-los.
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O ACIDENTE DOMÉSTICO

Os colegas de trabalho sabiam do drama que ela em vão tentava esconder. Quando o marido vinha buscá-la, longe dela sempre o apelidavam de um modo diferente. Ora o chamavam de “Sr. Maçaneta”, ora de “Seu Armário”, e às vezes “Lá vem o homem-escada”. Apelidos que variavam conforme as desculpas inventadas por ela para justificar os hematomas que insistiam em lhe aparecer pelo corpo.

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O PESSIMISTA


Ela o olhou por cima dos óculos de sol e disse sorridente: “Entre um pessimista inteligente e um otimista idiota, eu fico com o primeiro”.
Abriu-se um sorriso bobo no rosto imberbe. Enfim, ela lhe dava preferência. Aquela declaração só podia significar uma coisa: “Ela está caidinha por mim!”.
Pensava nisso e sonhava. Pensava nisso e não percebia que naquele momento, ele, o suposto pessimista, estava sendo simplesmente um idiota otimista.

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Resenha de Mayrant Gallo

obra do selo 3x4


Como qualquer gênero literário que subverte a tradição, o miniconto também já possui seus inimigos. Recentemente, em conversa com um escritor numa livraria, o miniconto veio à baila, e o autor, sem meias palavras, me disse: "Miniconto é bobagem, porcaria, coisa de quem não tem assunto nem sabe escrever; não é literatura". Com efeito, também não tinham assunto nem sabiam escrever Julio Cortázar, Jules Rénard, Jean Cocteau, Yasunari Kawabata e tantos outros. E eles não foram literatos, não fizeram literatura. [continue lendo>>]